Encontros
Se Deus quiser
“O lugar ao meu lado no ônibus está vago”, te escrevo, antes mesmo de (re)conhecê-lo pessoalmente. Você se diz tentado, mas como bom paulistano está muito ocupado sobrevivendo. O convite, a princípio, é mais uma provocação que uma proposta. Estou curiosa sobre a sua história, os oito anos que separam quem fomos e quem somos agora, a fé como ofício e a sua negação, as rupturas todas, as novas possibilidades. Você é um livro que quero ler e, talvez, até sentir o cheiro de suas páginas. Dobramos a noite para fazer caber alguns drinks entre uma ópera e a viagem. O tempo e sua incrível capacidade de criar brechas em vidas passadas. Conversamos por horas, como você bem previu, mas não só. Eu quero escrever na folha branca do teu corpo a palavra desejo. E o faço, até quase o momento de embarcar, como quem sabe que, ao partir, não há garantias de voltar pra te encontrar ali ou em qualquer destino. Dois dias depois, porém, é você quem desembarca em mim, em uma tarde quente de primavera em pleno inverno, onde seus olhos competem com o céu e com o mar. E eu me permito mergulhar como quem voa, sem pressa ou o peso de promessas. Conjugamos muitos verbos juntos, é bom te ouvir contar sobre tudo aquilo que te forma, tocar a narrativa dos seus dias, trocar alguns pontos de lugar, interrogar só para te ver desdobrar mais um “e se”. Adoro o gosto de seus lábios gastos nos meus. O quanto você está presente. E ao te ver dormir, quase posso sentir a matéria de que são feitos os sonhos. Sem querer possuir outro tempo, que não esse que partilhamos, me encanto com a intensa delicadeza do nosso encontro. E, mesmo após o fim, a viagem segue mais bonita porque você esteve aqui.
Amor
“Gosto de amoras desde quando existo”
E antes disso?
”Antes disso… Não sei se minha mãe gostava de amoras.”
Sorrio, com a certeza que eu, filha dela, gosto de amoras desde quando não era mais que a possibilidade de uma boa história. Ou um susto.
Sementes
"Sabe quem planta essas palmeiras? Os tucanos. Eles vêm, comem os frutos e, depois de digerirem as sementes, eles as devolvem para a terra, já adubadas." Ele me conta, enquanto passeamos entre as muitas árvores frutíferas de sua propriedade, a maioria nativa, mas algumas plantadas, por seu pai, por sua esposa, por ele, pelos pássaros e outros animais, mas não sei se por sua filha. "Uma cidadã do mundo", ele me diz, aguçando a minha curiosidade sobre essa personagem, cuja ausência é sentida até por mim, que ainda não a conheço. E, tenho a impressão, sou beneficiada pela saudade que ela desperta, pelo menos durante a hora que, percorrendo o terreno vizinho, aprendo sobre plantas, aves, peixes e as histórias que agora me atravessam. A casa que habito já foi de uma benzedeira, que honro com o canteiro de ervas mágicas, mas foi também um local de produção de mel e de uma amizade que ainda faz brilhar os olhos. Penso quanta alegria, fé, cura e doçura essas paredes, que agora me acolhem, abrigam. Os tucanos, nós deveríamos ser mais como eles, não é mesmo?, lhe digo. "Bravos?'’ Também, mas não só. Deveríamos viver semeando o que nos alimenta, naturalmente, sem grande esforço ou alarde, num fluxo contínuo e infinito.




